Valores: sensibilidade, empenho, observação
Idade: 32 anos
Naturalidade: Covilhã
Ana Catarina Pereira, investigadora de Cinema, lançou recentemente o livro “Geração Invisível”, do qual é co-autora. A obra, que pretende promover os jovens cineastas portugueses, surge no final da sua investigação de doutoramento. Especialista em Teorias Feministas do Cinema, estudou o trabalho das mulheres de realizadoras, tendo constatado que esta profissão, em Portugal, é um fenómeno recente. O seu fascínio pela sétima arte e por querer dar mais oportunidades às mulheres num meio predominantemente masculino fizeram-na desenvolver um projecto: o de criar um festival de cinema feminino.
Quando me matriculei em Doutoramento, na Universidade da Beira Interior, tinha pensado desenvolver um estudo que relacionasse o feminismo e a produção artística por parte de mulheres. No fundo, queria saber se existe ou não uma sensibilidade feminina que nos distinguisse quando criamos objectos culturais. Como sempre fui cinéfila, e como parte do meu curso tinha uma forte componente ligada ao Cinema, pensei que podia centrar-me precisamente na sétima arte.
Queria descobrir como eram as mulheres por detrás das câmaras, numa esfera que foi tão associada ao voyeurismo dos realizadores-homens e à objectificação das actrizes-mulheres (sendo estas últimas quase sempre belas, muito estereotipadas e distantes das mulheres reais com que nos cruzamos na rua).
A quantidade de estudos que estão a ser feitos no mundo inteiro e a quase ausência de investigadores interessados na temática, em Portugal, levou-me a enveredar por esta área. Alguns colegas aplicam os estudos de género à publicidade, a programas televisivos ou mesmo ao cinema, mas centram-se sempre numa análise dos estereótipos e, maioritariamente, em objectos produzidos por homens. A minha pesquisa é diferente, uma vez que estudo exclusivamente filmes realizados por mulheres, e tento perceber os seus possíveis traços originais.
Para mim, foi surpreendente descobrir alguns filmes como “Aparelho voador a baixa altitude”, de Solveig Nordlund, estreado em 2002: é uma ficção científica realizada em Portugal, por uma mulher, o que faz dele um objecto raro na História do Cinema mundial. O que me fascina no filme é sobretudo o facto de a realizadora ter adaptado um conto de JG Ballard, totalmente focado nas personagens masculinas, e ter “feminizado” a história, centrando-se antes nas personagens femininas. Outro filme que descobri durante a minha pesquisa, e que também me atraiu bastante pelos factos verídicos em que se baseia, foi o “Solo de violino”, de Monique Rutler, que conta a história verídica de Adelaide Coelho da Cunha, filha do fundador do jornal “Diário de Notícias” e esposa do director do mesmo jornal.
Mas o que mais me surpreendeu, na minha pesquisa, foi uma certa falta de identidade de determinadas artistas, precisamente enquanto mulheres. Para algumas cineastas não faz qualquer sentido falar-se de filmes realizados por mulheres ou mesmo de uma produção artística feminina. Para além disso, a palavra “feminismo” continua a assustar muitas pessoas, e a ser vista como uma espécie de antónimo de machismo, o que é perfeitamente surreal.
Talvez eu seja utópica, mas gostava mesmo que, em plena segunda década do século XXI, se abolissem diversos estereótipos e se tentasse perceber que os movimentos feministas buscaram, na sua essência, a igualdade entre os géneros e não a superioridade de um deles.
Neste sentido, aplicar o feminismo à arte implica o conhecimento aprofundado de uma produção artística que foi, durante muitos anos, proibida, mais tarde, desaconselhada, e que hoje em dia ainda é minoritária, por um conjunto de factores que se prende com a igualdade de direitos conquistada em democracia, mas uma desigualdade de oportunidades que se consubstancia no quotidiano.
As mulheres artistas, mas também os homens, podem alterar as estruturas de pensamento dominantes. Isso é um trabalho que tem que ser feito a partir de dentro, ou seja, procurando não recorrer sempre aos mesmos clichés, aos mesmos finais felizes e às mesmas noções do que é belo.
Quando permanentemente se associa a imagem da mulher à beleza e a do homem ao profissionalismo e à capacidade de agir estamos a fomentar uma sociedade desigual, onde as nossas expectativas, enquanto mulheres, são sempre diminutas. Isso acontece no cinema, e em todas as áreas.
Na sociedade em que vivemos, uma mulher que assume um cargo público não tem que ser apenas incorruptível, séria, profissional, observadora e com capacidade de liderança. Tem também que corresponder aos rígidos cânones que a sociedade nos impõe como sendo belo, elegante e proporcional.
Qual a minha opinião sobre a imagem feminina que o cinema veicula? Depende do cinema. Felizmente, hoje em dia, as coisas começam a mudar, ainda que certos estereótipos continuem a ser detectáveis. Há um cinema mais comercial que continua a apostar muito na imagem das actrizes. Em Portugal, “O crime do Padre Amaro”, com imagens muito explícitas da Soraia Chaves, foi um desses exemplos, mas há outros a nível internacional. A imagem das Bond Girls, nos filmes do agente OO7, bem como grande parte das heroínas dos filmes de fantasia e ficção científica são exemplos disso.
Para o meu trabalho busco inspiração nos filmes que reproduzem as imagens contrárias e que contornam estes estereótipos. Os dois portugueses que referi foram uma inspiração para a minha tese, que é centrada no cinema português. Mas há também exemplos muito interessantes, ao longo de toda a História do Cinema, de mulheres realizadoras que souberam realizar um cinema profundamente feminista. A Alice Guy Blachè e a Germaine Dulac foram precursoras, mas há também os casos da Ida Lupino e da Dorothy Azner, nos anos 30 e 40, ou mesmo da Agnès Varda e da Marguerite Duras, que marcaram muito o período dos anos 60 e da Nouvelle Vague.
Contemporaneamente, continuo a gostar muito do trabalho da Jane Campion, Sally Potter e Sofia Coppola, mas também de algumas realizadoras menos conhecidas, tanto de França (Catherine Breillat), como de Espanha (Icíar Bollain), e até mesmo do Irão (Marjane Satrapi), da Líbia (Nadine Labaki) e da Índia (Mira Nair). O que me inspira, na verdade, é a poesia e o realismo de algumas imagens ficcionais.
A minha tese levou-me a co-organizar um livro com o Professor Tito Cardoso e Cunha: o “Geração Invisível”. Surge precisamente da falta de bibliografia sobre cinema português contemporâneo, com que me fui debatendo ao longo destes anos. A maioria dos investigadores que estuda cinema português prefere centrar-se nos autores mais canónicos, o que faz com que a maioria dos novos cineastas seja invisível em termos académicos, recebendo apenas umas escassas (e muito tendenciosas) linhas dos críticos de cinema nos jornais nacionais.
Para nós, foi importantes escrevermos um livro que pudesse ser lido fora do contexto académico, por quem se interessasse por conhecer melhor o cinema português. Gostávamos que as pessoas percebessem que esta nova geração está a fazer filmes para chegarem ao público: muito centrados no quotidiano, na vida real, sem os planos lentos e as personagens teatrais que tantas vezes se associa à produção nacional.
Criei no facebook a página “Geração Invisível”, para que fosse divulgando o trabalho dos novos cineastas portugueses. Em pouco tempo, têm-nos enviado mensagens muito atenciosas, a agradecer e a estimular o nosso trabalho. Contam-nos que, de facto, o livro é muito reflexivo, mas que pode ser lido, “como um romance”, por ter uma escrita acessível e por despertar uma imensa vontade de ver os próprios filmes. Isso é um mérito dos 17 investigadores que escreveram os 14 artigos que compõem o livro, e que são oriundos de diversas universidades, sobretudo de Portugal, Brasil, França e Itália.
Tanto nas minhas aulas como nas conferências em que tenho participado, tento dar um enfoque especial ao trabalho das mulheres cineastas. Sendo uma área pouco estudada em Portugal, acaba por gerar uma certa curiosidade. Tanto alunos, como outras pessoas que se interessam pelo meu trabalho, gostam de saber que existem algumas mulheres a filmar longas-metragens de ficção, em Portugal, para além da Teresa Villaverde (que será provavelmente a mais reconhecida). Querem saber que tipo de filmes são estes, como os podem ver...
Gostava de realizar um festival de cinema feminino, precisamente para divulgar estes filmes, também eles invisíveis para a maioria dos portugueses. Tanto na ficção como no documentário, há várias mulheres a fazer um trabalho muito interessante, que deveria ser mais visto. Infelizmente, em Portugal, os festivais e os cineclubes são os espaços privilegiados para se ver cinema português, uma vez que as distribuidoras e salas comerciais não apostam tanto na sua programação.
Um festival de cinema de mulheres, podendo parecer uma medida discriminatória, ajuda a repor uma certa justiça pela dificuldade que muitas mulheres enfrentaram para conseguirem filmar. Seria, nesse caso, uma medida de discriminação positiva que, na minha opinião, fomentaria uma certa igualdade de oportunidades.
São vários os festivais no mundo que me inspiram. Mas sobretudo o Femina, no Rio de Janeiro, que este ano já teve a sua décima edição, com diversos filmes portugueses em competição. Gosto muito do espírito e da mensagem que as organizadoras tentam transmitir. Os seus objectivos passam por incentivar o surgimento de novas realizadoras, a produção de filmes com temática feminina, e o debate das questões de género, que me parece importante trazer para Portugal. Também em Santiago de Compostela, realiza-se anualmente o Mufest, e que assume a mesma missão. Espanha tem 3 festivais deste tipo e Portugal, nenhum. Espero poder vir a criar um, brevemente.
Se sinto que tenho uma "missão" nesta área? Penso que sim. Para mim é importante que o trabalho de investigação tenha efeitos práticos e uma relação com o quotidiano do número máximo de pessoas. Gosto de sentir que as minhas ideias não são excessivamente teóricas e que, a partir delas, podem surgir projectos e acções concretas, que, por sua vez, inspirem novos projectos e novas acções.
Photo © Carlos Pimentel