Cláudia Henriques, Sydney
WOW Austrália
Um estória de vida(s) cheia de História
Bondi é famosa pela sua praia mas num dia de chuva temos de procurar outros pontos de interesse. E ainda bem que assim é ou não teria descoberto uma livraria que por sua vez me fez descobrir uma estória que se cruza com a História do século XX.
Localizada no número 46 da Hall Street, a Gertrude & Alice Cafe Bookstore é uma homenagem da proprietária, Jane Turner, a duas mulheres: Gertrude Stein e Alice B. Toklas. A livraria e o café dividem um pequeno mas acolhedor rés-do-chão, onde as paredes estão ocultas por estantes (e mais estantes) cheias de livros, os corredores estreitos ligam as salas, as mesas e as cadeiras se distribuem da melhor maneira possível. Lado a lado, conversas e leituras partilham o mesmo espaço, livros e cafés fazem dupla e todos parecem sentir-se bem assim.
Duas protagonistas, uma estória de vida
Quem foram afinal as mulheres que dão nome à casa? Conheceram-se em Paris, a 8 de Setembro de 1907, e nunca mais se separaram. Gertrude Stein nasceu no seio de uma família judia abastada, na Califórnia, e aos 29 anos mudou-se para a capital francesa com os irmãos. O gosto pela arte levou-os a comprar obras de artistas que se começavam então a evidenciar: Picasso, Matisse, Braque. Em pouco tempo a residência dos Stein tornou-se um ponto de encontro para os admiradores e foi numa dessas reuniões que se viram pela primeira vez. Alice B. Toklas, também ela uma judia de origem americana, estava de passagem por Paris e foi visitar o amigo Michael Stein. Só a morte as voltou a afastar.
A escrita era a outra grande paixão de Gertrude. A escritora queria deixar a sua marca pessoal no mundo das letras, optando por se afastar dos modelos convencionais. ‘Uma rosa é uma rosa é uma rosa’, é umas suas frases mais citadas. A verdade é que apesar da pouca receptividade junto das editoras e dos leitores, o seu estilo muito próprio despertou a atenção e admiração de jovens artistas à época, que se reuniam no n.º 27 da Rue des Fleurus. Picasso, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Henri Matisse e muitos outros faziam parte do ciclo íntimo. Gertrude foi responsável pela ascensão de Pablo Picasso, que a imortalizou num célebre retrato.
Alice manteve-se sempre nos bastidores. Era amiga, confidente, musa, crítica... O seu apoio foi constante e chegou ao ponto de criar uma editora para publicar as obras da companheira. Não deixa de ser curioso que o maior sucesso literário de Gertrude tenha sido a ‘A autobiografia de Alice B. Toklas’, onde conta pela voz de Alice a sua própria estória.
A morte de Gertrude em 1946 colocou um ponto final numa relação que durou mais de 40 anos e sobreviveu a duas guerras mundiais. Apesar da vontade de Gertrude em que Alice fosse a sua legítima herdeira, os seus descendentes ficaram com as obras de arte uma vez que a união delas não tinha valor jurídico. Os últimos dez anos da vida de Alice foram marcados por dificuldades financeiras e só a ajuda dos amigos e a sua escrita lhe permitiram continuar. Ao mesmo tempo que tentava publicar os manuscritos deixados por Gertrude, Alice começou a escrever sobre culinária e viu o seu talento reconhecido em 1954 com a obra ‘O livro de cozinha de Alice B. Toklas’, onde a par das receitas conta episódios da vida conjunta com Gertrude. Morreu aos 89 anos e foi sepultada o lado de Gertrude no cemitério Père Lachaise em Paris. Duas protagonistas, uma estória de vida e uma lição de História.